sexta-feira, 10 de março de 2017

As memórias do Fontão de Augusto Castro em "Religião do Sol" (1900) e Prefácio de “Angeja e a Região do Baixo Vouga” (1937)


Os primeiros anos da vida de Augusto de Castro (1883-1971) foram repartidos pelo Porto e pela Quinta do Fontão, em Angeja. Seria ao Vouga e aos seus “fundos de paisagem polvilhados a oiro”, que a sua infância e juventude ficariam indelevelmente ligadas, como o próprio reconheceria, algumas décadas mais tarde:

“Todo o homem é, espiritualmente, filho da paisagem que iluminou a sua infância. A nossa alma é moldada na terra. Nascido no Porto, tripeiro de origem, foi nas terras do Vouga que passei, posso dizer, a minha infância. De lá, espiritualmente, parti. Quando meus Pais vinham passar as férias do Natal, da Páscoa ou as férias grandes ao Fontão, a pouco mais de três quilómetros de Angeja, começava para mim a grande evasão rústica da aldeia que foi a primeira e a melhor escola do meu espírito. Se, mais tarde, a vida me separou dessas primeiras afeições, nunca na realidade, as esqueci”.


As longas temporadas no Fontão foram descritas em “Religião do Sol”, obra redigida por Augusto de Castro enquanto estudante da Universidade de Coimbra. Nela descreve com minúcia não só as paisagens do Fontão e de Angeja, a quinta, o pessoal de serviço doméstico e os vizinhos, mas também as desfolhadas, as romarias e outras festividades locais. Prova desta pormenorizada narrativa é a sua visão do Fontão:

“A minha fresca aldeia escorrega toda por um carreiro íngreme e pedregoso, num vale que defronta um montado de verdes sombrios, de pinheiros esguios como cadafalsos e folhagens sinistras como almas de corvos. As casas todas se anicham, numa grande pacificação de conforto, brancas, enviuvando há séculos do dono, metendo vento pelas frestas, mas todas elas de peitos amplos, com músculos retesados e vigorosos”.


Se, do pessoal que prestava serviço doméstico na casa, lembra “a boa Ana, limpa, fresca, nas rugas dos seus sessenta anos”, que todas as manhãs o acordava e lhe estendia “os calções de malha, a camisa de folhos e as botas abonecadas”, dos vizinhos recorda o regedor Laranjeira, “de suíças ruivas lançadas em penacho aos cantos, grandes mãos calejadas e faces de vinagre”, que, por vezes, o acompanhava pelos seus passeios, falando “das vindimas, dos milhos queimados e da fruta”.

Outra figura importante dos tempos do Fontão foi Emília, “a noiva de sorriso esquecido a um canto dos lábios”, que foi o seu primeiro amor: “mais tarde vieram os tremores escondidos do primeiro beijo atrás duma meda de palha, numa espadelada ao luar, com a timidez sobressaltada da Emilita. Ela corou muito, corou muito e fugiu”. Seguiriam caminhos diferentes.


No que respeita às festas, é a de Nossa Senhora do Carmo, tradicionalmente celebrada a 16 de Julho, que merece maior destaque. Esta encontrava-se, intimamente, ligada ao solar herdado pelo pai, pois era na capela da quinta do Fontão que estava a imagem da padroeira.

Era também aí que se celebrava, no segundo dos três dias que durava a festividade, a eucaristia:

“Logo no outro dia – domingo – manhãzinha cedo, começam a vir os padres de longe, a cavalo em éguas de cabeça esbatida, com malhas brancas nas patas, e estribos de caixa à antiga. Chegam todos e ao meio-dia em ponto, entre o compasso acentuado e grave da batuta do regente da música e a cantilena roufenha e solene da festa, dá-se começo ao palmear sagrado da missa. A capelinha é um santuário de madeira gasta, amarelecida. Nela a Padroeira está risonha, e tem uns olhos muito puros e muito suaves para minha Mãe e para a velha Ana que andaram nesse dia desde o raiar do Sol a aperaltar as jarras com florões de buxo e de camélias. Terminada a festa é o almoço dos padres lá em casa, enquanto os músicos lá fora vão entornando, numa santa jucundidade, a última alegre gota do quente sangue de Cristo".


“Religião do Sol” é, provavelmente, o título mais sugestivo de toda a sua vasta obra. De carácter autobiográfico – apesar do autor contar à época apenas 17 anos, idade talvez muito precoce para uma tão grande nostalgia –, estas prosas rústicas parecem encerrar um carácter ritualista, que marca a passagem da infância para a vida adulta, ou seja, a saída, porventura dolorosa/traumática, da casa paterna no Porto e a entrada na Academia, em Coimbra, longe dos que lhe eram mais próximos e queridos.

"Religião do Sol" reflecte a idiossincrasia lusa, patente no processo de estereotipação que opera nas descrições do pessoal doméstico e do ambiente pastoril e inocente, com que descobre o amor. Retrata também a dualidade campo/cidade, dicotomia que pode ser vista como “produto” da vida de Augusto de Castro, uma vida ora citadina, no Porto, ora campestre, no Fontão.


As longas temporadas no Fontão e em Angeja seriam, novamente, recordadas – com nostalgia e saudosismo – por Augusto de Castro, já na fase adulta, ao aceder escrever o prefácio da obra “Angeja e a Região do Baixo Vouga”, de Ricardo Nogueira Souto. Nesse evoca, uma vez mais, a importância desse período para a formação do seu espírito e carácter:

“Se toda a nossa vida é dominada pelas impressões da primeira idade, eu devo, sem dúvida, às fontes risonhas, aos calmos e ondeantes campos, às estradas luminosas, às romarias, aos vinhedos e aos pomares do Baixo Vouga, em que fui criado, esse fundo de optimismo tranquilo, de confiança jovial e de sereno amor pelo espaço e pela luz que sempre, que até hoje, dominou o meu espírito”.”

Nas primeiras páginas dessa monografia local reconhece que falar de Angeja ou do Fontão é “uma evocação dos doces, frescos e cantantes vergéis do Vouga em que meus primeiros anos decorreram”. Nessa obra relembra como, no Verão, nos dias quentes do mês de Agosto, percorria “o túnel de Angeja, a pateira de Frossos e as estradas”; observava “a ria, as areias e as águas claras do Vouga”; “bebia água das fontes”; e contemplava “os milharais ao vento, os adros floridos, os pinhais, as eiras com o milho dourado ao sol, os rebanhos nos campos”.


Não se esqueceu, de igual modo, que foi aí que saboreou, pela primeira vez, a caldeirada de peixe do rio de Aveiro, “cheirosa, fumegante, crepitando de azeite e côdeas de trigo; espessa e picante, capaz de ressuscitar o estômago de um morto”. Nem olvida o convívio com algumas das personalidades mais importantes da região, visitas frequentes de seu pai: o Padre Santos “alto e espaduado, bom como uma criança”, o “Padre Zezinho, que tinha e, felizmente, ainda hoje tem talento e graça às carradas”, o Castanheira, o Laranjeira, o Manuel Maria de Angeja, “em cuja casa, durante a festa da senhora das Neves se comiam os melhores leitões assados da região”, e os Lemos de Alquerubim.

Pormenor de não menos importância, é o facto de associar à quinta do Fontão a imagem que guarda da mãe: “quando recordo minha Mãe é, sob os caramanchões do jardim, em que duas grandes bicas de água ora soluçam, ora cantam, que a vejo passar e chamar-me, perpetuamente viva, com seus grandes olhos que pareciam sempre rezar quando me viam”.

Angeja, o Fontão e a festividade de Nossa Senhora do Carmo assumiriam uma tal relevância para Augusto de Castro que este, mais tarde, só viria a partilhar o espaço com aqueles que lhe eram mais próximos – o poeta João Lúcio, colega do curso de Direito, companheiro da toada coimbrã; e os escritores e políticos, Júlio Dantas e Carlos Malheiro Dias [autor de "Os Telles de Albergaria" sem qualquer ligação ao nosso concelho], amigos com quem compartilhava o gosto pela poesia, pelo romance, pelo teatro, mas também pelo jornalismo, pela política e pela diplomacia. Dito de outro modo: com os amigos forjados na juventude e nos primeiros anos da fase adulta, mas que se prolongariam, singularmente, para toda a vida.

Fonte: Dissertação “Arte de falar e arte de estar calado: Augusto de Castro - Jornalismo e Diplomacia” de Clara Isabel Calheiros da Silva de Melo Serrano (adaptado) com base nas obras “Religião do Sol. Prosas Rusticas” (1900) de Augusto de Castro e Prefácio” de “Angeja e a Região do Baixo Vouga” (1937) de Ricardo Nogueira Souto

Mais informações: Blog de Albergaria / Universidade do Porto / Site do Parlamento / Wikipedia 

1 comentário:

Luís Alberto Meneses Almeida disse...

O diplomata e jornalista Augusto de Castro fez os seus estudos superiores na Universidade de Coimbra e é primo da família da minha bisavó materna ( Sá Coelho Sampaio ).